domingo, 25 de maio de 2014

Gigante Gentil e Guerreiro



Erasmo Carlos tem quase 1,90m. Ontem, no palco do Vivo Rio, a estatura do veterano rocker não cabia em medidas tradicionais. Erasmo burlava o sistema métrico decimal, a ABNT e demais subterfúgios do gênero, sua grandeza era total. Não que essa seja apenas uma opinião de um admirador da obra do Tremendão desde os seis, sete anos de idade. Erasmo, de fato, era quase maior que a vida ontem. Isso se deve não só ao brilhantismo de sua extensa obra como cantor e compositor, mas pelas circunstâncias em que sua subida ao palco do Vivo Rio se deu. Há dez dias, Erasmo enterrava seu filho Carlos Alexandre Esteves, 40 anos, vítima de um desastre motociclístico. Quando a maioria certamente optaria pela reclusão - justa, claro - Erasmo decidiu não adiar os planos de divulgação de seu mais recente - e ótimo - disco, Gigante Gentil, cujo título revela apelido dado a ela nos anos 70 pela cantora Lucia Thurnbull, parceira de Rita Lee no finado Tutti Frutti.

Com cerca de dez minutos de atraso, ele surgiu pela direita do palco, enquanto sua excelente banda atacava a introdução da faixa título do novo álbum, inegavelmente pesada, rocker, com ataque de três guitarras (incluindo a de Erasmo), mais baixo, bateria e teclado. "Rrrrrock'n'roll, amigo", como diria um Galvão Bueno hipotético. A plateia foi pega de surpresa, afinal, todos sabiam que ali estava um homem em luto. Mesmo assim, Erasmo emendou a tradicionalíssima "A Carta" com "Gatinha Manhosa", canções que estão em seu segundo álbum, "Você Me Acende", lançado no distante ano de 1966. Veteranas fãs dos tempos da Jovem Guarda cantaram ambas a plenos pulmões. O Erasmo setentista e brilhante surgiu com "Sou Uma Criança Não Entendo Nada", do maravilhoso álbum "Projeto Salva Terra" (1974), "Dois Animais na Selva Suja da Rua", esta última de autoria de Taiguara, presente em "Carlos, Erasmo" (1971) e "Grilos", de "Sonhos e Memórias", meu disco preferido de sua carreira, de 1972.

A partir daí, Erasmo alternou composições clássicas de sua carreira com a produção mais recente, intercalando brilhantes leituras para "Sentado À Beira Do Caminho", "Mulher" e "Mesmo Que Seja Eu", com as boas e novas composições como "Colapso", "50 Tons de Cor" e "Jogo Sujo". O fim do show se encaminharia com um medley da Jovem Guarda, com "Quero Que Vá Tudo Pro Inferno", "Minha Fama de Mau", "Vem Quente Que Eu Estou Fervendo" e "É Proibido Fumar", todas rearranjadas em versões bastante pesadas, pontuadas pela guitarra em chamas de Billy Brandão, que transformou as inocentes canções em verdadeiros e inesperadas porradas hard rock, com direito a solos incandescentes e colorações psicodélicas, sobretudo em "Quero Que Vá Tudo Pro Inferno".

O fim do show viria com a protocolar "É Preciso Saber Viver", canção gravada por Roberto Carlos em 1974, no mesmo disco em que estão "Eu Quero Apenas" e a colossal "O Portão". Erasmo, que passara o show inteiro tentando levar seus pequenos sketches bem humorados adiante, brincando com sua idade, a chegada da Internet no cotidiano do mundo, homenagendo e exaltando as mulheres, brincando com os gritos que vinham da plateia, simplesmente sucumbiu sem qualquer vergonha às lágrimas. Com ele, praticamente toda a plateia. Eu já havia me emocionado em dois momentos, "Sentado À Beira Do Caminho", cuja versão presente no disco "Erasmo Carlos Convida", de 1980, em dueto com Roberto Carlos, era presença constante no rádio da Brasília branca do meu avô, que era fã dos Carlos. "Mulher", do disco homônimo de 1981, também sempre foi uma favorita, com sua declaração de amor à finada esposa Narinha, potencializada por conta de seu suicídio em 1995 e da própria passagem do filho, mencionado também na letra.

Minha emoção de fã, no entanto, não pode ser comparada à do ídolo, que se desmanchava em verdade no palco. Erasmo contorceu o rosto enquanto a banda continuava executando a canção, olhou para o alto, como quem não consegue explicações. Quem já passou por isso, meus caros, sabe que o gesto deve estar esculpido em algum cromossomo comum a todos nós. Olhar para o céu quando perdemos alguém é quase um arco-reflexo. Só que Erasmo não planejou nada daquilo, ele não era um holograma, um ator, um boneco de ventríloquo, uma banda da Vila Madalena, do Brooklyn ou de Portland. Era o velho Erasmo Esteves, natural da Tijuca, que andou de bonde, passou fome, gostou de rock, viveu, sofreu e ainda vive. E ainda sofre. Seu choro no palco é daquelas velhas manifestações de um mundo que não existe mais. De um tempo sem tempo marcado, sem posições estudadas, no qual a realidade ainda invade os esquemas e compromissos. A despeito da emoção, do agradecimento ao público pelo carinho, pela assiduidade e compreensão, Erasmo dedicou cada nota musical dada ontem no palco ao filho morto. No último número, "Festa de Arromba", que deveria ser alegre, com pessoas dançando na plateia, rostos desfeitos em lágrimas estavam por toda parte, quando um urro veio lá da frente, com Erasmo vociferando "Valeu, Gugu! Valeu, caralho!", referindo-se ao apelido de Carlos Alexandre.

Erasmo tem 72 anos de idade. Parece que ele não se esqueceu dos significados de várias coisas que o levaram até ao show de ontem. É um homem de verdade, que não tem medo de se expor. É homem e ídolo, sabe bem a diferença entre um e outro e não se preocupa que este invada o espaço daquele. Erasmo é real e eu, que nunca tive pai, desejo toda força possível para ele, ontem, hoje e sempre.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Favoritos McDonald's - McEspanha



Confesso que não tenho simpatia pelo país ou por sua seleção. Também não sou muito chegado aos times da Liga BBVA, na qual Real Madrid e Barcelona, empresas que nadam em dinheiro, se impõem numa lógica neocapitalista, sobrepujando outras equipes, como Atlético de Madrid, Valencia e Sevilla, as que integrariam uma espécie de segundo pelotão de força dentro da lógica clubística do país. Mas você não está aqui por isso, sua presença se deve à vontade de ler meu parecer apurado sobre o primeiro dos sandubas da série Favoritos McDonald's, o McEspanha.

Como sujeito de alma gorda que sou, espero a chegada dos sanduíches da Copa do Mundo com certa ansiedade. O McEspanha foi anunciado como uma combinação de frango crispy, pão especial, maionese de oliva, copa, mix de folhas, tomate e queijo apimentado. Pois bem, vamos analisar isso tudo. O pão especial, nada mais é que o pão branco hamburguês com o desenho dos hexágonos de uma bola de futebol retrô. Houve gente que confundiu o desenho com o casco de uma tartaruga. Tá valendo. Nada diferente no sabor do pão, passemos ao recheio. O frango crispy não me parece nada espanhol. A encarnação 2010 do McEspanha trazia filé de merluza, mais apropriado, ainda que não totalmente. Interessante seria fazer um sanduíche com carne de porco, homenagem à famosa variação jamon que habita o sudoeste do país. Mas, qual o quê. Fizeram um tal frango crispy, essa solução genérica para qualquer país. A mistura com a maionese de oliva e o tomate cairia bem se não fosse pela presença do queijo apimentado. Gente, aprendam, queijo e maionese não andam juntos. Porque não.

O elemento que poderia distinguir o sanduíche, a copa, feita com o músculo do pescoço do porco, uma referência correta às tradições espanholas, mais parece um salame de oitava categoria. Enquanto o frio original é gostoso, salgado e guardado por até dois meses para apurar o sabor, a "copa" da fast food é qualquer coisa, menos copa. Além disso, como não há aderência e casamento entre os ingredientes (nasceu para ser sanduíche de folhas, tomate, carne e maionese, mas desemboca no queijo - que impede a absorção da maionese - e na copa, que é lisa e gordurosa), o McEspanha tem potencial considerável de virar um acidente para o comensal despreparado para sanduíches que se desfazem. Tenha cuidado.



Nota 6

OBS: Tentarei provar todos os sandubas e postar minhas impressões por aqui. Aguarde. Ou não.

OBS2: O melhor sanduíche de todos os tempos temporais do McD é o bom e velho Quarteirão Com Queijo. Porque sim.

sexta-feira, 7 de março de 2014

O Acústico MTV do Lobão





Pretendo postar alguns velhos textos meus aqui na versão 2.0 do Blog do CEL. Este é sobre o Lobão à época do lançamento de seu Acústico MTV, início de 2007, bem antes do sujeito assumir sua parcela reaça.


A campanha publicitária para o Acústico MTV do Lobão traz o próprio, soltando a seguinte declaração: "Nunca vi alguém se dar bem depois de gravar um acústico". O anúncio se completa com a frase: Acústico MTV Lobão. Não tente entender, assista.  É justo, muito justo, é justíssimo.

Viva O Acústico Lobão! Sim, viva!  Por que haveríamos de reclamar? Finalmente Lobão está de volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído. As paradas? – pergunta o fã do artista. Não, respondo eu. A música pop. Tudo bem que o sujeito nunca foi essa Coca-Cola toda na ourivesaria pop. Ele perde para gente como Lulu Santos, Guilherme Arantes, Herbert Vianna, Renato Russo, perde para quase todos da sua geração, mas, é bem melhor ouvir um Acústico MTV do Lobão que ler suas viagens sobre a injustiça das gravadoras para com ele.

Realmente alguém aqui acreditou que o Lobão entrou nessa seara de arauto da música independente nacional por altruísmo? Por ideologia? Por vocação? O velho João Luiz Woerdenbag tornou-se persona non grata nas gravadoras nacionais ao longo de sua carreira, apesar de ter emplacado discos de sucesso nos anos 80, como Vida Bandida (1987) e O Rock Errou (1985). Brigou com tudo e todos, se deu ao luxo de passar quatro anos estudando violão clássico (após o horroroso O Inferno É Fogo, de 1991) até encher o saco da BMG com o lançamento do mal resolvido Nostalgia da Modernidade, em 1995 e ser chutado de lá. Ele ainda tentaria lançar mais um disco, supostamente eletrônico e bem chato – Noite (1998) – com distribuição da Universal. Mais um fracasso. Até que foi defenestrado de uma vez por todas.

O que fez Lobão? Ao contrário do que poderíamos esperar de um músico com quase vinte anos de carreira (àquela época), Lobão não se acomodou. Lançou um disco nas bancas de jornal, A Vida É Doce, e depois lançou mais dois, sendo que o último, Canções Dentro da Noite Escura, veio encartado na sua revista, a OutraCoisa. Lobão, portanto, ingressou numa espécie de militância contra as gravadoras e seus mecanismos predatórios. Válido.

Deu a cara para bater quando exigiu que a tiragem dos discos viesse explicitada no código de barra para que ele não levasse prejuízo. Ah, os outros artistas também, claro. Válido.

Encartou discos independentes em sua revista, dando oportunidade de distribuição para artistas novos e fazendo a OutraCoisa aumentar o preço e assim vender mais. Válido de novo.

Mas de alguma forma sempre pareceu evidente que todo o estardalhaço que o sujeito criara vinha de um recalque, um choro de perdedor, um ranço qualquer. Algo como aquele menino pequeno que faz um desenho bonito e vai mostrar pros pais e estes não dão a mínima, estão ocupados fazendo outras coisas. A criança vai triste para o quarto e resolve pichar muros no dia seguinte. Claro que este exemplo é depreciativo e isso é intencional, porque, em última análise, Lobão está contradizendo tudo aquilo que adotou como discurso ao longo dos últimos anos. Algo muito importante, pois fez com que ele deixasse de lado suas canções para ser o elemento contestatório de plantão, uma espécie de jurado mau de programa de auditório. Só que supostamente esclarecido e independente. A indústria cultural adora esses tipos. São um prato cheio para criar frisson entre a massa e Lobão aceitou com prazer as aparições na MTV, no Raul Gil, os anúncios do governo federal concedidos em sua revista (lembrando sempre que um dos maiores desafetos dele é o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, o responsável pela viabilização dos recursos que regem a Lei de Incentivo À Cultura, da qual Lobão se beneficiou), enfim, o Velho Lobo nunca saiu de cena e devia gargalhar de tudo isso em sua casa no Alto Leblon.

Nessa onda de ser independente, Lobão arrebanhou um monte de admiradores, seguidores, fãs. Não de seu trabalho como músico – que ele mesmo deixou relativamente de lado – mas de sua atitude. O que deve estar passando na cabeça dos independentes quando Lobão aparece num Acústico MTV, cantando praticamente apenas hits oitentistas e assinando contrato com a Sony/BMG – cujo presidente, Alexandre Schiavo, foi um dos seus maiores alvos – que prevê mais um disco inédito em 2008 e o relançamento de seus trabalhos nos anos 80? Não importa. Segundo Lobão, as gravadoras estão melhores agora e ele é o responsável por isso. É engraçado, admita.

Ele também diz que não se vendeu ao sistema, mas que está usando o sistema a seu favor. É mais engraçado ainda, vai.

E então, o Acústico do Lobão é legal? Claro que sim! É bem feito, produzido pelo Carlos Eduardo Miranda, mas traz o velho problema dos acústicos, a falta de punch. Aliás, o Miranda é uma escolha implicante, diz o Lobão. É outra pessoa que está diretamente – e dignamente – ligada às vielas independentes e que teria sido escolhido para incomodar. Coitado do Miranda, este sim, um sujeito que fez música independente, através do Selo Banguela Discos, numa época em que Lobão cantava “Jesus Não Tem Drogas No Pais Dos Caretas”, o único hit (mediano) de O Inferno É Fogo. Mas, segundo o slogan, “não tente entender”, apenas ouça.

Partindo do pressuposto que as pessoas são livres e acreditam no que querem, não podemos culpar o Lobão por seu surto indie. O cara foi bem sucedido, deu chance a algumas boas bandas e faturou seu troco mesmo posando de enfant terrible. Apenas precisamos dizer que sua fase independente (sic) terminou e merecidamente. Afinal de contas, todo artista indie almeja um bom contrato com uma gravadora major e Lobão nunca foi nada mais que um artista de gravadora, típico. Ele é daqueles que deveriam gravar um disco a cada dois anos, fazer covers, chamar convidados especiais, aparecer nos especiais de Roberto Carlos cantando “Detalhes”, enfim, coisas do gênero.

Lobão é um cara talhado para o mainstream. Sempre foi. Agora ele está em seu lugar. Isso é legal. A independência? Ora, que se dane. 


quinta-feira, 6 de março de 2014

Porque "Ela" Era O Melhor Filme Do Oscar 2014



Sempre que me arvoro a escrever algo sobre cinema, vem a sensação que é muito mais complexo analisar um filme que um disco, levando em conta a minha especialidade, entender álbuns, bandas, músicas. Um longa é algo mais amplo, capaz de comportar mais dados, talvez. Mesmo assim, tanto discos quanto filmes são obras de arte que podem mudar mundos, pessoas ou, no caso de Ela, tirar um retrato preciso de um tempo. O roteirista/diretor Spike Jonze conseguiu esse delicado instantâneo dessa nossa época estranha. É algo mais interessante que os outros filmes indicados/badalados desta época do ano e, a despeito do prêmio de Melhor Roteiro Original, merecia melhor sorte junto à Academia.

Segundo a ideia de Jonze, num futuro próximo - talvez em dez, vinte anos, se muito - a humanidade estará mais concentrada em comunicar-se virtualmente, tornando-se uma multidão de pessoas conectadas apenas com o que não podem/querem ver de perto. A impressão é que basta puxar um fio em algum lugar e toda essa engrenagem de comunicação à distância pode ruir em segundos, deixando todos desamparados e vagando em caminhos sem fim, talvez os mesmos que são trilhados, sem que saibamos, todos os dias. Quando vi Ela no cinema, me lembrei de Zygmunt Bauman e sua ideia dos "tempos líquidos", a ausência total de vínculos entre as pessoas, algo que, infelizmente, está a ponto de tornar-se realidade. O velho sociólogo polonês detectou essa tendência de liquefação dos laços entre pessoas, instituições e tudo mais, gerando uma sociedade nova, protegida por uma série de mecanismos como o medo extremado da violência, o politicamente correto e vários outros tiques sociais que impedem de avançar. No caso do filme, o "avanço" ocorreu em termos tecnológicos, deixando um vácuo emocional, que se traduz em vários aspectos ao longo da narrativa. Tons pasteis em contraste com alguma cor próxima do vermelho/carmim, expressões que variam entre o aturdido e o entristecido, paisagens urbanas assépticas e invasivas e, como queríamos demonstrar, uma solidão maior que a vida.

Joaquin Phoenix é Theodore, uma dessas pessoas sem face na multidão de solitários andantes, recém-separado e que ganha a vida como empregado de um site especializado em escrever cartas a pedido de pessoas que não têm coragem de enviá-las para outras - uma das grandes ironias do filme, que acaba passando batida em meio ao cenário familiar/assustador que se ergue. Theodore é um sujeito sensível e profundamente entristecido, que passa suas noites em frente a um videogame, até que decide comprar um novo sistema operacional para seu computador. A promessa do fabricante é proporcionar o mais próximo de uma experiência real entre máquina e usuário. Logo após a instalação, "entra em cena" Scarlett Johansson, no papel de Samantha, nome que o sistema operacional escolhe para si, com vistas a interagir com Theodore. Após alguns momentos iniciais de espanto com a capacidade do novo sistema, fica evidente que, num mundo em que as representações e simulações estão em toda parte, Samantha terá o conhecimento completo de Theodore em pouco tempo, além de poder moldar-se com vistas a agradá-lo mais e mais, de acordo com sua própria programação.

A presença de Samantha, além de organizar e "otimizar" a vida de Theodore, começa a preencher os diferentes tipos de vazio em seu cotidiano, desde uma mãe para cuidar dele, uma amiga para perguntar sobre coisas familiares e, com o passar do tempo, uma namorada para acordá-lo, procurá-lo durante o dia para saber como está e, ao fim de algum tempo, para demonstrar afeto, carinho e fazer sexo. A cena em que Theodore e Samantha "transam" expõe a fragilidade daquele relacionamento, algo que parece suficiente no início, mas que vai tornar-se um problema mais tarde, justamente pela impossibilidade de resolução. Talvez aí esteja a grande questão proposta ao público: é possível contentar-se com um relacionamento que permanece na esfera virtual? É possível viver algo verdadeiro se não há possibildade de um relacionamento "de carne e osso"? No caso do filme, ainda há o questionamento maior de ser ou não possível um relacionamento entre um ser humano e uma máquina, uma vez que Samantha, apesar da insinuante voz de Scarlett Johannson torná-la totalmente humana, é um sistema de computador, nada além. E, sendo assim, seria aceitável que um ser humano topasse viver algo sem a perspectiva de evolução para um novo terreno? Algo com uma máquina, que "não existe" como ele?

Ela é um filme romântico, distópico e muito bonito. Ninguém parece saber para onde vai, todos aparentam segurança, indiferença, autossuficiência mas, em sua esmagadora maioria, estão tremendamente solitários, amedrontados e sem o controle de suas vidas. Pode ser uma visão pessimista mas o filme é encantador justamente por expor esse traço humano de 2014, mesmo que faça uso de uma bela alegoria visual. Ela é bem feito, bem filmado, tem diálogos inteligentes e duas belas atuações. Joaquin Phoenix, ostentando um bigode que transita entre Magnum e Belchior, está soberbo e Scarlett Johansson faz de Samantha um dos seus mais brilhantes papéis. Claro que o fato do sistema pegar emprestada a voz de uma mulher tão bonita pode contribuir para uma suposta boa vontade do público para com a verossimilhança da trama mas, confesso, esquecemos o tempo todo que Scarlett está falando em nome de algo inanimado. Pobre Joaquim.




sábado, 1 de fevereiro de 2014

O Carimbo


O mundo acordou mais justo, é o que dizem. Após suposta espera de muito tempo, a Globo exibiu, no capítulo final de sua novela das 21h, Amor À Vida, um beijo gay entre os personagens Félix e Nico. Vejam, eu não sou espectador da atração global, tenho orgulho em dizer que só vi poucos minutos da trama por estar fora de casa, sob os preceitos da convivência social, que me impediam de mudar o canal da televisão que exibia a dita cuja na noite de Natal. O pouquíssimo que vi, assim, de soslaio, era lastimável, sobretudo para quem, em outros tempos, teve a sorte de ver novelas como O Bem Amado, Pai Herói, Água Viva, Dancing Days, entre tantas outras.

A ideia não é ser saudosista, cada época tem sua produção cultural e o perrengue de assimilar que o mundo muda é nosso, que já está além dos trinta e tantos. O que não muda, desde os tempos da ditadura militar, é a condição de canal preponderante que a Globo possui. Não vejo vantagem em ler que atrações da TV Record, de propriedade do Bispo Edir Macedo, ganham pontos no Ibope a cada dia, surrupiando da emissora carioca sua condição inabalável. A descida rumo a patamares de qualidade é célere e acompanha um movimento social que parece ir na mesma direção, numa valorização de manifestações culturais de caráter mais simplório que há alguns anos. Ainda assim, em pleno 2014, a Globo desfruta de uma condição de instância do senso comum, ou seja, a partir do momento em que sua programação insere algum dado, aquilo passa a existir para uma significativa parcela da população.

Mesmo para pessoas com informação e conhecimento em níveis satisfatórios, ainda parece difícil mudar o canal da televisão. Não importa o número de opções disponíveis em canais pagos, o povo quer ver a novela, o Faustão, o Jornal Nacional, o terrível Big Brother e o Caldeirão do Huck, sem falar no inominável Esquenta. Todos são momentos em que a emissora manifesta sua posição política e social, uma verdadeira transferência de opinião, uma chancela para que assuntos possam entrar na ordem do dia. Não há problema se o público é ignorante e desconhece opções, mas se torna quase inaceitável quando formadores de opinião não conseguem se desvencilhar desse mecanismo de controle. Sim, gente, programação de TV é isso. Ou vocês acham que há gnomos do bem, lactobacilos vivos, ceramidas cor de rosa ou bichinhos Disney interessados apenas no seu entretenimento descompromissado?

Torço por um dia em que as questões sociais importantes não precisem deste carimbo global para existir. Utópico, mas é isso aí.